quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O inferno são os outros

Outro trecho discutido no cursinho de Mr. Charles Watson. Que me lembrou uma vez de ter pensado que nada, nada que eu faça nessa vida, tem sentido se não for o outro.

Paul Valéry: No cerne do pensamento de um estudioso ou de um artista _ mesmo aquele mais absorto em sua busca, que parece totalmente encerrado em sua própria esfera, deparado com aquilo que existe de mais íntimo e mais impessoal _ está presente uma estranha intuição com relação às reações externas a serem provocadas pelo trabalho em curso: é difícil para um homem estar só.

O efeito desta presença pode sempre ser percebido, sem medo de erro, mas ele pode estar subtilmente atrelado a outros fatores do trabalho, às vezes tão bem disfarçados, que se torna impossível isolá-lo.

Contudo, sabemos que o verdadeiro significado de uma determinada escolha ou de um determinado esforço, por parte do criador, muitas vezes está fora do trabalho em si, e é o resultado de uma preocupação mais ou menos consciente com relação ao efeito a ser produzido e suas conseqüências para seu produtor. Assim, enquanto voltada para o trabalho, a mente vai e volta constantemente do Self ao Outro; o que ela produz de mais íntimo é modificado por uma estranha conscientização do julgamento dos outros. Portanto, em nossas reflexões sobre um trabalho, podemos assumir uma ou outra destas duas atitudes mutuamente exclusivas. Se temos a intenção de prosseguir dentro de toda a austeridade que o assunto nos impõe, devemos estabelecer uma cuidadosa distinção entre investigar a criação de um trabalho e estudar a produção de seu valor, isto é, os efeitos que tal trabalho poderá produzir aqui e acolá, em tal e tal cabeça, neste ou naquele tempo. Para demonstrar este ponto, é suficiente reparar que aquilo que podemos realmente conhecer, ou pensamos saber, em qualquer domínio, não é senão aquilo que podemos observar ou fazer, nós mesmos, e que é possível juntar em uma mesma condição, e na mesma atenção, a observação da mente que produz um determinado valor no trabalho. Nenhum olho é capaz de observar estas duas funções imediatamente; produtor e consumidor são dois sistemas essencialmente separados. O trabalho para um é o destino, para o outro a origem do desenvolvimento, o que, dependendo da interpretação, pode causar estranheza.

Devemos então concluir que qualquer julgamento que envolva uma relação de três termos, entre produtor, trabalho e consumidor––e julgamentos deste tipo não são raros em criticismo–– é um julgamento ilusório, que não pode fazer qualquer sentido e que é imediatamente destruído pela menor reflexão. Só podemos considerar a relação de um trabalho com seu produtor, ou então, uma vez pronto, a sua relação com aquele a quem ele afeta. A ação do primeiro e a reação do segundo não podem jamais se encontrar. A idéia que um tem do trabalho é incompatível com a do outro.

Daí surgirem freqüentemente surpresas, algumas das quais são vantajosas. Existem erros que são criativos. Existem muitos efeitos –– e dentre eles os mais poderosos –– que requerem a ausência de qualquer correspondência direta entre as duas atividades em questão. Um determinado trabalho, por exemplo, é o fruto de uma longa luta; ele carrega consigo um grande número de tentativas, repetições, rejeições e opções. Ele exigiu meses ou até anos de reflexão, e pode mesmo pressupor a experiência e as realizações de toda uma vida. Entretanto, o efeito deste trabalho pode levar não mais do que alguns minutos para se fazer ver. Um olhar de relance poderá ser suficiente para se apreciar um monumento considerável, para se sentir seu impacto. Em duas horas, todos os cálculos do trágico poeta, todo o tempo gasto em ordenar os efeitos de sua peça, formatando cada linha, uma por uma; ou então, todas as combinações harmônicas e orquestrais criadas pelo compositor; ou todas meditações de um filósofo, os longos anos que dedicou a moderar, controlar, refrear seu pensamento, até que pudesse perceber e aceitar sua ordem definitiva, todos estes atos de fé, todos estes atos de opção, todas estas transações mentais finalmente atingem o estagio de trabalho concluído, to golpear, maravilhar, deslumbrar ou desconcertar a mente do Outro, que, de repente, torna-se sujeito ao arrebatamento desta enorme carga de trabalho intelectual. Tudo isto cria um ato desproporcional."

2 comentários:

MegMarques disse...

Adendo à famosa frase de JP Sartre:

O inferno são os outros, mas o paraíso também.

Rubão disse...

Sim. Esse foi quase o meu título: (o céu) e o inferno são os outros. Transmimento de pensação, jogadinha ensaida: levanto, a Dotôra corta.