Ontem conheci o pai da gataça. Não sei se percebem o grau da cautela: considero prudente referir-me a ele como o pai da gataça. No máximo, co-autor da obra-prima (aí, já estou abusando da sorte).
O respeitabilíssimo senhor, português de origem, é um cavalheiro educado, austero, reservado. De seriedade e postura tais que, infere-se, não é de admitir gracejos e piadinhas de qualquer ordem ou sujeito. Que dirá do namorado da filha que ele está para conhecer no dia do aniversário dela. Sem mencionar que o homem, como um Hemingway do Tejo, foi caçador na África e coleciona na parede cabeças empalhadas de animais (incluindo aí genros, ouvi dizer).
Pra vocês verem como eu já estava à vontade.
Meninos, que dizer? De início, fiquei petrificado. Congelado, mas só da cintura pra cima: torcia pra que ninguém percebesse o tremor em minhas pernas. Ao entrar naquela sala, entendi o que sentiram Amundsen e Schackleton ao singrar em meio aos glaciares.
A tensão estava no ar. Dura. Gigante. Maciça. Mané faca o quê: só daria pra cortar aquilo com britadeira. Ficamos ali, sem saber o que falar.
Pensei: já sei como quebrar o gelo. Saquei do casaco o presente da gataça: uma singela caixinha que cabia na palma da mão.
Senti a doutora prendendo a respiração, imaginando que eu estava prestes a cometer uma loucura. À minha esquerda, o pai da gataça permanecia mais imóvel do que quinze estátuas, embora seus olhos arregalados estivessem prontos para saltar das órbitas. Excitadíssimas, as meninas pulavam como cabritas sobre o sofá, berrando “Anel de casamento!”, “Anel de casamento!”, mas tudo em mim eram murmúrios distantes, o atabaque no meu coração me ensurdecia e a periferia da minha visão turvava enquanto eu e a doutora gritávamos em desespero um “Nããããããããããããããão!” que pareceu durar a eternidade.
Todos, todos os olhos e respirações daquela sala estavam fixos naquela caixinha, e o tempo transcorria mais lentamente porque, estou certo disso, naquele momento, à espera do desenlace, abriu-se uma fenda na quarta dimensão, nunca segundos foram arrastados, nunca olhares estiveram tão cravados em um par de mãos numa caixinha.
Então, para enterrar as angústias, a gataça desembrulhou o papel que continha o aparelhinho e retirou o MP3. Não posso garantir 100%, mas poderia jurar ter visto o pai dela desabar no sofá; as meninas continuavam saltando como gafanhotos, a doutora voltou a sorrir, aliviada, e eu nem precisei de sais aromáticos.
Durante o jantar, o clima foi amainando. Pudemos trocar palavras, e o resto da noite, tirante uma ou três bobagens que falei, transcorreu sem maiores incidentes . Apesar de toda a tensão e desconforto, acho que tudo acabou bem.
Ainda estou respirando, não estou?
7 comentários:
Geeente... Que sufoco!
Parabéns pra doutora. Por coincidência, ontem comemoramos 18 anos de casados.
Não gostei do fim da história. Cadê o anel-de-casamento?
A.None Moh
Hahahaha, que história ótima! =D
Olá, sou amiga da Meg e adorei o relato do encontro com o pai da eleita. Que vc continue fazendo minha amiga gataça feliz !
Um abraço,
Fefê
Que bom ver minha amiga sendo "gostada" assim! Fico feliz por vocês.
Beijos, Leticia (aquela que você foi na casa quando tinha um milhão de crianças bagunçando tudo)
Adorei o post, gatinho!
Faltou dizer que eu não parava de falar um segundo para que não se instalasse qualquer silêncio constrangedor na mesa.
E que o peixe que encomendei ficou pouco para o apetite de três adultos ligeiramente tensos.
E que, melhor de tudo, meu pai gostou de você! Aliás, não te contei antes, mas você foi o primeiro namorado meu que ele elogia de alguma forma.
Nanda e A. None Moh, vocês já são de casa.
Lolló, Fefê e Letícia, a casa é de vocês: sejam bem-vindas! Claro, Lets, que me lembro de você e daquela ótima tarde (você não deve ter visto, eu era uma das crianças que estavam bagunçando tudo).
Doc, o fato é que gostei de verdade do teu pai: ganhei a noite quando você falou que ele foi com minha cara (sobretudo porque ele me permitiu viver para contar a história)!
Obrigado, pessoal! Beijos a todos,
r
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