O levante das Amélias pitbull
Em novembro de 1994, fui cobrir a participação de Ruth Cardoso, esposa do presidente eleito Fernando Henrique, no congresso da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que até hoje acontece em Caxambu, Minas. Depois de flanar durante o dia por entre as mesas-redondas e palestras, dona Ruth sentou-se à beira da piscina do hotel, com seus amigos intelectuais, para fumar um cigarrinho e tomar um drinque. Ali vi que era o tipo de mulher a admirar: inteligente, independente, interessante. Eu nunca votaria no marido dela para nada, mas dona Ruth era a perfeita primeira-dama. Termo, que, coerentemente, odiava.
Sou uma espécie de especialista em primeiras-damas. Sempre que estive em Brasília cobrindo política, elas eram “minha área”. Fui a primeira jornalista do país a entrevistar Rosane Collor após a vitória em 1989, e depois da posse, em 1990. Collor foi substituído por Itamar Franco, que era divorciado. E então veio dona Ruth. Claro que a discreta antropóloga foi um sopro de civilidade diante da moça simplória, cuja característica mais marcante era combinar a bolsa com os sapatos. E que achava ser primeira-dama “bárbaro”. Com Lula chegou dona Marisa Letícia que, pena, optou por ser silenciosa. Mas, com exceção da estrela sem noção que quis pôr nos jardins do Alvorada, nada fez que pudesse me envergonhar como cidadã.
Dona Ruth foi de longe a mais completa das primeiras-damas, mas ainda assim era primeira-dama, não presidente. E vejam só. Agora que se desenha a possibilidade de termos finalmente uma mulher no cargo máximo da Nação, e não um apêndice – admirável ou não -, eis que duas integrantes do sexo feminino saem da sombra onde se achavam para colocar as brasileiras “no seu devido lugar”, com a mensagem subliminar de que não nascemos para presidir, e sim para sermos eternamente primeiras-damas. No máximo, vice-presidentes, cargo que Rita Camata topou ocupar ao lado de José Serra em 2002. Presidente, não. Se ser primeira-dama é tão bom, toda a glória e nenhum poder…
Não consigo ver diferenças profundas entre Weslian Roriz e Monica Serra. Deveria, pois enquanto a primeira é a típica mulher “do lar” da geração de nossas mães, a segunda esteve exilada com o marido no exterior, estudou em universidades norte-americanas, tem até doutorado. Do jeito que tem se posicionado, foi uma surpresa para mim descobrir isso – sinceramente, pensava que era apenas uma ex-bailarina e dona-de-casa. O caso da sra. Roriz é sem dúvida mais grave: ela quer se tornar governadora para continuar a ser primeira-dama! Já Monica quer ser primeira-dama, e basta. Alguém duvida, porém, que faria o mesmo pelo “Zé” se ele, por alguma razão, pedisse? Que se lançaria às feras de uma eleição, como Weslian, para agradar ao marido?
O tipo de fidelidade canina de Monica é idêntico ao da mulher de Roriz. Como Amélias pitbull, ambas são capazes de atacar quem quer que seja na defesa do macho da casa e da instituição familiar. Ambas se dizem católicas fervorosas. E ambas apelam para o aborto para tentar derrotar os adversários dos maridos. No debate do primeiro turno na Globo do Distrito Federal, a “doce” Weslian virou-se para Agnelo Queiroz, do PT, e, em vez de responder à pergunta que lhe foi feita, leu seu papelzinho: “Ah, o sr. é comunista, não acredita em Deus! Então, é a favor do aborto ou não?” Monica recebeu a incumbência, ao lado do vice Índio da Costa, de atiçar pastores e padres para que associem Dilma Rousseff a valores condenados pela igreja. Nas palavras da candidata a primeira-dama, Dilma “gosta de matar criancinhas”.
Tanto o comportamento da mulher-laranja, que ocupa o lugar do marido ficha-suja, como o da mulher que assume a estratégia mais rasteira da campanha para deixar a figura do esposo imaculada me parecem igualmente desprezíveis. Weslian e Monica encarnam a perfeita antítese dos quase 50 anos de movimento feminista no mundo. Quem diria? Em pleno século 21, após tantas lutas e conquistas, surgem do nada duas mulheres sem brilho próprio para impor, em Brasília e no Brasil, uma moral arcaica, retrógrada, em que aborto não é um problema de saúde pública, mas religioso.
E o pior, para insinuar que nosso papel deve continuar a ser subalterno, subserviente, que não estamos “preparadas” para sermos presidentes. Não é assim que fala a propaganda do maridão de Monica? O mais engraçado é que a ação delas se dá justamente diante da perspectiva de passarmos quatro (ou oito) anos sem ter primeira-dama alguma. É como se Weslian e Monica estivessem à frente de um levante de felizes e ferozes donas-de-casa preocupadas em salvaguardar a existência de um cargo por si – Ruth Cardoso tinha toda razão em abominar o termo – meio patético.
Somos iguais aos homens. Não somos maiores, mas não somos menores. Não nascemos para servir – embora, gentis, gostemos de servir. Não fomos feitas para nos submeter a tudo que os homens querem, nem os nossos homens. E não viemos ao mundo para sermos primeiras-damas resignadas em permanecer nos bastidores, na cozinha, ou, na melhor das hipóteses, servindo de peça de enfeite, ornando poderosos. Estamos, sim, preparadas para estar no comando do país.
A postura de Weslian Roriz e Monica Serra me causa indignação e estou segura que indignaria Ruth Cardoso, se fosse viva. Sobre o aborto, aliás, ela declarou em 1999, em entrevista no programa Roda Viva: “Eu acho que se deve garantir o direito às mulheres de usarem ou não essa possibilidade”. Não surpreende que pensasse assim. Dona Ruth não era nenhuma Amélia.
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