quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sapere aude*



Parte II de um post aí pra trás, espremendo um cadim dilemas da educação , tutelato, etc. Ao ataque, pois!

Na Idade Média, a busca pela formação do homem livre era inspirada na clássica educação greco-romana, desvinculada de preocupações mundanas ou laborais.

Estruturou-se, nas primeiras universidades, nos mosteiros e catedrais – algo aí em torno do século IX – uma metodologia de ensino baseada em sete artes denominadas liberais. Dividiam-se em dois conjuntos: Trivium (encontro de três vias) e Quadrivium.

Trivium era composta por gramática, dialética e retórica. Reproduzindo aqui informação de segunda mão, de acordo com um teólogo da época, “a Gramática é o conhecimento de como falar sem cometer erro [gramática não no sentido como a entendemos hoje, mas sim no propósito de ensinar a clareza de expressão e comunicação de ideias]; a Dialética é a discussão perspicaz e solidamente argumentada por meio da qual o verdadeiro se separa do falso; e a Retórica é a disciplina da persuasão para toda e qualquer coisa apropriada e conveniente”. Trivial e elementar, meu caro. Aí está a base.

O sujeito podia parar por aqui e professar sacerdócio ou função administrativa eclesiástica. Ou, então, partir para o Quadrivium e continuar o edifício da sua instrução.

Aritmética, geometria, astronomia e música compunham o Quadrivium. O objetivo destas artes era a providência dos meios e dos métodos para o estudo da matéria e das coisas, pavimentando o caminho para seguir adiante. E, após o quê, era possível ao compadre se especializar em alguma das disciplinas superiores em voga na época: direito, medicina, teologia avançada.

Estas, como foi sublinhado, eram as artes liberais. A aprendizagem de profissões do tipo artesanal, como construção civil (ó a maçonariaí, gente!), se circunscreviam a corporações de ofícios, guildas e grêmios, creio.




Qual a boa ideia por trás da didática do Trivium, Quadrivium ?

Bom, o bichim tinha que aprender primeiro o domínio da linguagem – principal, mais básica ferramenta humana de interpretação e intermediação com o mundo – e as sutilezas, desdobramentos e complexidades decorrentes da sua aplicação, a partir do estudo de . Trocando em miúdos: primeiro, aprender a raciocinar. Depois, no Quadrivium, percorrem-se as disciplinas de cálculo, espaciais, “numéricas”, “de “quantidade”, que lhe permitiriam uma aplicação mais prática na sequência, útil ou imprescindível a determinados ofícios.

E o que toda essa salada tem a ver com o ensino de hoje?

O trecho que encontrei, num blog que me pareceu meio conservador, consegue traçar uma síntese lúcida e precisa da questão:

“O enigma da baixíssima eficiência do ensino, que não é fenômeno exclusivamente brasileiro, foi em parte resolvido na década de setenta pelo padre austríaco Ivan Illich (1926-2002), que propôs a sociedade sem escolas “tout court”. A tese de Illich, cujo mérito avulta na proporção direta do fracasso educacional geral, é que o sistema de ensino não tem por objetivo realmente educar, mas somente distribuir socialmente os indivíduos, por meio do ritual de certificados e diplomas. A escola formal, esta que Illich deseja suprimir, não é um meio de educação, mas um meio de “promoção” social, fato que as pessoas humildes revelam perceber quando insistem com o Joãozinho: estude, meu filho, estude...

Como se vê, vamos decifrando o mistério à medida que desprezamos a falsa equação entre ensino e educação. O sistema de ensino não produz educação, porque está ocupado demais em produzir documentos. Educação terá de ser buscada preferencialmente alhures, fora do sistema. É claro, sempre haverá um professor ou outro que, valendo-se da apatia do sistema, dará, por sua própria conta, aulas magistrais e educará de fato, contanto que seus alunos o desejem – o que, obviamente, nem sempre é o caso.

Temos aí uma espécie de lei geral com correlação inversa: a capacidade de educar alguém é inversamente proporcional à oficialidade do ato e diretamente proporcional à liberdade de adesão do educando. A educação prospera mais quando se a procura livremente. Este é o sentido da palavra “liberal” (de liber, livre) nas Sete Artes “liberais” da idade média, que eram ensinadas ao homem livre, por oposição às artes “iliberais”, ensinadas ao homem “preso”, controlado por guildas. Estas corporações de ofícios faziam grosseiramente o papel do sistema de ensino moderno, regulando privilégios econômicos e sociais.”

* * *

Olhando sem preconceito, a pedagogia escolástica medieval me parece bastante razoável. Aplicá-la ou adaptá-la aos dias de hoje são outros quinhentos. Se, de lá pra cá, até hoje se encontram desdobramentos e sistemas de ensino inspirados na escolástica, e em diferentes países, deve ser exatamente porque o encadeamento lógico da coisa toda cale lá dentro, faça sentido.

Ex-ducare: conduzir pra fora. Indo além, agora, seria preciso que fizéssemos a pergunta que pra mim é a raiz do problema: para que serve a educação, afinal?

A educação serve para o trabalho? Para a submissão, sublevação ou sublimação do espírito? É para aprender a pensar e descobrir coisas novas? É talvez para tudo isto junto e misturado, não podendo ser colocado da forma simplista como está aqui?

Fato é que, em praticamente qualquer talho que se tire da História, em qualquer época e qualquer lugar, sempre houve, por parte dos estratos sociais politicamente dominantes, a consciência de que era preciso restringir ao máximo a disseminação de conhecimento e circulação de ideias para que a massa de dominados não se insurgisse contra o status quo. As torneiras da educação, cultura, informação – todas as formas que a fluidez das ideias assume – são um poder estratégico que deve ser aberta ao povo aos pingos e aos poucos, de acordo com as circunstâncias. Assim foi, da pólis grega ao berço dos faraós, assim é, da Inglaterra recém-industrializada à mídia que hoje dissemina a idiotia e o consumismo embrulhadas em ilusões de arrivismo.

Então, hoje, para um filho, o que significaria uma educação de valor? Depende das premissas das quais partimos. Das inclinações pessoais do próprio indivíduo, acredito. E do subjetivo bom senso. Não tenho a resposta.

Mas veja aí o amigo minha inguinorança. Foi surpreendente reconhecer na fórmula medieval Trivium + Quadrivium um belo contraponto ao atual estado de coisas. E não adianta tentarmos nos enganar com maquiagens, converse você com qualquer professor do ensino público - e até do privado! – que você encontrará depoimentos aterrorizantes, apontando claramente para uma decadência generalizada - municipal, estadual, federal, global. Eis o perigo. Pois não defendem alguns que a formação deficiente dos cidadãos acarreta na formação de uma sociedade débil, corrompida e manipulável em todos os sentidos?

E vão combiná, né geeentem: não dá para levar muito a sério as estatísticas de educação propagandeadas pelos governos. Quase sempre são de natureza quantitativa – quantos entraram mais cedo na escola, quantos mais concluíram, quantos diminuíram a repetência – e quase nunca qualitativa – vide o grande contingente de analfabetos funcionais que deixam as instituições de ensino, grande parte sem saber ler, escrever ou fazer conta direito - e o mais grave - sem saber pensar.

Talvez, como disse Kant, tudo se resuma exatamente a isso, o dístico que poderia ostentar um lábaro do Iluminismo: *Ousar saber.

Ousar pensar.

3 comentários:

MegMarques disse...

Uhm, dá o que pensar. Excelente texto, ótimas reflexões.

Bruno Perpetuo disse...

Muito bom. Belíssimo até. Parabéns.
Mas começa a propagar isso por aí que a modernidade te chama de elitista e retrogado. Quem despreza a análise, a dialética e a retórica é a sociedade hiperconectada livre. Essa bandeira hoje é defendida apenas por meios conservadores. Basta ler os principais blogs dos maiores pensadores progressistas atuais. Vá até qualquer um deles e fale em "estruturação do pensamento" em paralelo à disseminação do conhecimento. Vão cair de pau em cima do seu frágil corpo moreno... vais virar beato, liberal e toda sorte de bobagem intransigente. É isso meu amigo, chegamos a era que ou és ignorante ou és intransigente. Abs e boa sorte em sua luta. Mas, cá entre nós, tô começando achar legal ser chamado de ignorante... eles são notoriamente menos preparados, mas infinitamente menos pretensiosos, rs

Rubão disse...

Meu cada vez mais gordo corpo moreno agradece as gentilezas. Mas o Nelson já dizia, há décadas: o sujeito, pra sobreviver (nas escolas, no trabalho, nas redes sociais) tem que se fazer de idiota. Pura verdade. Abs