Brumadinho, Centro de Arte Contemporânea.
De tudo que vi em Inhotim, o que mais me impressionou foi o que ouvi.
Pedestres, circundamos uma trinca de fuscas de cores primárias e entremeadas, perfilados como a aguardar um tiro de largada que jamais acontecerá; antropólogos, retratramos uma cultura de populares de fibra de vidro que emergia das paredes externas numa súbita tridimensionalidade; exploradores, transpusemos a grande porta giratória para então penetrar nos mistérios de um amplo salão branco, onde quarenta caixas acústicas vigiavam o centro de um círculo imaginário.
A princípio, não sabíamos o que esperar - pelo menos, eu não sabia. Lícito imaginar: abajures e bidês amalgamados no teto como cascatas luminosas de uma delirante metáfora visual; um piano de cordas sitiado pelas próprias teclas de marfim e ébano, num intricado motim de dominós; a figura absorta de um símio debruçado entre galhos de uma árvore, mastigando fêmures humanos ao invés de frutos. Não sei; tão embotados estamos pelo capricho de esquadrinhar e decodificar o mundo pelos olhos que jamais pensei que o sentido avocado primeiro seria a audição.
É preciso contar que a obra se chama Forty Part Motet; sua autora, a canadense Janett Cardiff; e a peça musical que velejava por quatro dezenas de canais de áudio, Spem in alium numquam habui.
Me fiz andarilho por entre as caixas de som. Cada uma delas, uma voz; cada uma delas, uma personalidade. Em algumas, o surpreendente silêncio; e, mesmo ali, encontrava-se voz; o silêncio não era ausência, o silêncio era alma. Como em cortejo, percorri a circunferência no sentido horário e, ainda antes de deslindar o arco de um diâmetro, senti a vergonha de estar chorando.
Quanto aos demais visitantes, ignoro; desejei não encontrar qualquer outro olhar. A doutora, que caminhava à frente, virou-se de repente. Sorriu; e então aparou gotas traidoras com dedos gentis. Devagar retraí o rosto pelo carinho que julguei demasiado suportar: meu constrangimento crescia.
Qual o quê, deixei as caixas de som e meu amor para trás rumo ao ponto onde convergia toda a densidade musical, o núcleo onde se consumava a totalidade dos cantos. Ali, onde o espírito bailava entre a leveza mais pura e a gravidade assustadora, experimentei a imperiosa necessidade de me abdicar da visão; a visão me cegava. Cerrei a luz e me deixei levar.
Quarenta vozes me preencheram, como se meu corpo fosse casca vazia; quarenta vozes procuraram meus ossos como se meu corpo fosse uma alameda de buganvílias em ânsia; quarenta vozes inundaram meu corpo, como se fosse uma frágil jarra de barro.
Entrei cambaleante num estado de êxtase de tristeza e beleza reunidas, inseparáveis como estrelas de um terrível sistema binário. Era forasteiro em um reino onde apenas o pranto fala. Lá, onde só as lágrimas escrevem, todas as palavras são mudas.
Subverti o tempo. Naquele instante, sem o saber, soube que a Spem in alium atribuíram uma irrupção de "transcendência" e "humildade"; que a sinfonia fora composta como presente de aniversário para a Rainha Elizabeth I; que a gravação era do coro da Catedral de Salisbury.
Nada disso importava. Compreendi que o sublime não comporta descrições.
Este relato falível e impreciso não pode ser tomado à guisa de recomendação ou advertência, visto que cada homem descobre, no interior de sua vastidão, onde gritam as próprias carnes. Mas, meu amigo fosse, e acaso perguntasse sobre Inhotim, caberia dizer sem medo: - Vá. Pode ir de olhos fechados.
E de ouvidos abertos.
6 comentários:
Que comentário mais lindo! Adorei o que vc escreveu sobre o que nós ouvimos. Fico muito feliz por ter estado lá com vc! Você fez parte da beleza da composição...
Meu espetáculo :)!
Bonito mesmo o relato, Rubão... Tá contaminado? rs
Fico feliz.
Abraços surdos.
Oi, Rubão! Eu fui lá uma vez. E isso foi uma das coisas que mais me atraíram. Fiquei um tempão sentada, só ouvindo. Mas, depois do seu texto, deu muita vontade de voltar e contemplar da forma como deveria. Cê tá sumido!!! Mesmo sem deixar comentários, continuo sendo a leitora nº 1 do blog! Espero que esteja tudo jóia! Abração!!!
Tô sem tempo pra ler seu blog e demais 'sites' a que me habituei. Acabo de chegar em casa, neste 3.10 e digo: seu texto está muito amadurecido, conseguindo exprimir pelas letras o exato sentimento da percepção das coisas e dos sentidos. Sou um maldito orgulhoso dos filhos que tenho.
A.None Moh
Bruno, Nanda e None Moh, obrigado!
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