Shakes era malandro. Em muitos sentidos.
Ainda mais combinando "som" e "fúria". Esses vocábulos, que tanto fascinaram e a tantos, me intrigam também - embora não saiba exatamente por quê.
“A vida é só um vulto, um pobre ator, que se pavoneia e choraminga num momento, sobre o palco, e depois não é mais ouvido. É uma fábula, contada por um idiota, cheia de som e de fúria, significando nada“.
Esse é o ponto. Toda vez que alguém diz "significa nada", cuidado.
Significa tudo.
sábado, 28 de julho de 2012
quinta-feira, 5 de julho de 2012
Furia jamás
Pra você ver que é possível mudar uma cultura.
Dá trabalho. Leva anos. Mas é possível.
A Espanha. Décadas e décadas regida por um epíteto fatal: "La Furia".
Ora, desde César sabemos que nome é destino. E o que vale para nomes, vale para apelidos. Repito: sobretudo para apelidos. Apodos flertam mais com a verdadeira essência das coisas que o próprio nome em si. São a versão adjetiva e substantiva dos cartuns e caricaturas. Entregam a autenticidade que a polidez impede ou polícia não permite.
De modo que nada atrapalhava mais a Espanha do que ter que ser "a Fúria". Era o tempo de Butrageño, o tempo de Michel. Por ter que incorporar, personificar, carregar o peso de ser uma Fúria, acabava por vias de fato sendo furiosa em tudo, do arremate do pênalti ao arremesso de um reles lateral.
Eis o drama. Porque a fúria raramente é bem-vinda, compadres. Nos momentos decisivos, nos grandes momentos, o sujeito precisa de um mínimo de controle, um mínimo de nervos, um mililitro de sangue frio. O espanhol, não. Antes, parecia que esse direito jamais lhe assistiria. A Espanha então sucumbia, vergava sob a burra responsabilidade de agir eterna e copiosamente como "La Furia". Essa era a sensação. No futebol, esperava-se que os descendentes do Reino de Castela e Aragão se comportassem com a calmaria típica dos ciclopes epilépticos. Isso atrapalhava, nas vitórias ou nas derrotas. Mais derrotas que vitórias, se lembrarmos bem.
Aí está o que hoje é claro e cristalino: ao ser a Fúria em chuteiras, a Espanha se sabotava. Enganava sua índole, sua arte, suas tradições. Ao acreditar que eram onze centauros chucros num pasto, a pátria que pariu um Dali, um Picasso, um Cervantes, se perdia, se traía, se mutilava. Faltava sempre a têmpera necessária para reverter situações adversas e dominar as partidas.
Para azar e sorte do mundo, hoje não falta mais. Em algum momento, os espanhóis reencontraram sua legítima vocação. Que nunca foi ser o touro, a Fúria, mas sim quem a atiça e a aplaca: o toureiro. Uma verdade que sempre esteve debaixo de nossas ventas atônitas.
Tem algo mais parecido do que um pano vermelho agitado aquele uniforme escarlate, a hipnotizar o adversário com o toque-toque de bola? Tem algo mais parecido do que um touro os adversários a peleja inteira correndo atrás da bola, numa ânsia de chifres em busca da carne, sem porém jamais encontrá-la? Tem algo mais parecido do que uma tourada do que se apiedar do time adversário, esgotado por tanto marcar e marcar, com os bofes pra fora, ferido e esbaforido, extenuado como um quadrúpede de quatro patas (sim, porque há quadrúpedes com duas, que há de se fazer) ao fim do jogo? E, talvez por isso mesmo, muitas vezes nesse balé almiscarado você se pega torcendo mais para o touro do que para o toureiro? Porque lá estão novamente os espanhóis, no momentos derradeiros, cravando uma, duas, três, quatro cruéis estocadas no lombo - digo, nas redes - do pobre animal?
É assim, tem sido assim nos últimos anos. Tourada após tourada. No papel de matadores, os espanhóis não tem pressa, não se afobam, não tremem. Dançam na arena abraçados a sua verdadeira identidade. Por mais que o touro venha pra cima numa louca e furiosa carreira, eles agora mantêm a bola, a flâmula e a fleuma. São senhores do espetáculo.
E dá-lhe olé.
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